#3: Roupas leves y tênis: uma cronologia do Look de Festival
O que aprendi no país em que o rock ainda é legalizado
Oi amigas
Escrevo para vocês de Buenos Aires, na Argentina. Vim passar uma pequena temporada que mistura férias, cosplay de nomadismo digital e o simples desejo de beber vermute bom e barato todos os dias. É uma empreitada que eu e meu namorado estávamos querendo fazer há bastante tempo, mas - de uma forma que tem se tornado uma constante nas nossas vidas - que só se concretizou mesmo quando a possibilidade de ver uns shows surgiu no horizonte.
O rolê da vez foi o festival Rock En Baradero, uma espécie de João Rock argentino que reúne bandas e artistas locais, além de uma ou outra atração uruguaia. O evento acontece há seis anos na cidade de Baradero, localizada a 142km de Buenos Aires, e foi para lá que fomos na Sexta-Feira Santa prestigiar essa grande paixão que compartilhamos, que é a banda El Mató a Un Policía Motorizado. Se você não conhece eles ainda, dê play em “Nuevos Discos” para entrar no clima também.
A princípio, tinha planejado escrever uma edição contando como anos e anos frequentando shows e festivais me levaram a dominar em definitivo a complicada equação que é montar um Look de Festival. Minha aventura no Rock En Baradero foi uma espécie de prova de título para essa medalha, já que envolvia uma variável com dificuldade elevada a uma potência altíssima, que foi a noite que precisamos virar na cidade após os shows, uma vez que o primeiro ônibus para a capital partia só às 6h45. E vou dizer uma coisa: fui aprovada no teste e passei com mérito.
Mas antes de resolver essa fórmula com vocês, gostaria de compartilhar algumas reflexões que essa experiência na Argentina provocou.
Comecei minha vida de frequentadora de shows em 2009, aos 15 anos. Nessa época o Lollapalooza ainda não existia, o Rock In Rio ainda não tinha voltado ao Brasil, o Tim Festival tinha acabado de ir com deus e o Planeta Terra ainda estava dando seus primeiros passos. Meu début coincidiu com o início dessa efervescência contemporânea de shows e festivais internacionais no país, com nosso Brasa entrando timidamente no mapa das grandes turnês.
Outra coisa que não existia nessa época era o Instagram e acho que esses dois grandes dados são relevantes para pensarmos numa cronologia do Look de Festival.
Okay grandma, let’s take you to bed
Quando comecei a frequentar grandes shows, o look padrão era uma coisa meio dia de excursão na escola: roupa confortável e meio surrada, cabelo preso, coturno ou All Star1. Um traje funcional para dar conta de horas na fila embaixo do sol, horas sentada no chão sujo; frio, chuva, sol, tudo na mesma noite, além, é claro, da multidão. Estar bonita não era uma prioridade. Na verdade, estar bonita sequer parecia uma possibilidade dentro desse contexto. E eu, vaidosa que sempre fui, sofria um pouco com isso, mas entendia que era a disciplina necessária para esse rolê doido que amo tanto por mais que às vezes se pareça com uma espécie de treinamento de guerra2.
Camiseta, jeans e All Star. Camiseta, legging preta, coturno. Rabo de cavalo, coque, protetor solar. E pronto. Eu nunca tinha parado para realmente pensar em como esse padrão tinha mudado até colocar meus pés no Anfiteatro Municipal de Baradero, o parcão da cidade onde rola o festival Rock en Baradero. Lá, com minha saia estampada, camiseta cor de rosa, cabelinho com gel e batom vermelho, eu me sentia uma verdadeira árvore de Natal entre uma multidão toda de camiseta preta, jeans e moletom. O máximo de comoção fashion eram os rostos pintados de glitter - que, depois eu descobri, eram feitas numa banquinha (sem marca) no próprio local.
O mais interessante é que não existia intenção e performance nessa simplicidade, ninguém ali era exatamente descolado, as pessoas simplesmente eram. Que doideira. Foi então que comecei a pensar em quando foi que tudo começou a mudar.
Na verdade, comecei a pensar nisso um pouco antes disso, quando a imagem acima começou a rodar no Twitter. Trata-se de uma foto tirada na edição de 2014 do Coachella, festival que talvez seja um dos grandes responsáveis pela instituição que é, hoje, o Look de Festival. Nascido na Califórnia, o Coachella é um dos muitos festivais contemporâneos que nasceu do desejo de recuperar a mística do mais famoso festival da história, o Woodstock dos anos 60. Lá atrás, o movimento hippie virou símbolo do evento e acabou, em contrapartida, por sedimentar a estética dessa aglomeração gostosa3 nos nossos imaginários.
Não é à toa, portanto, que o maximalismo do Look de Festival que vemos hoje começou com referências hippie: primeiro, no início dos anos 2000, com o estilo bohemian chic de Sienna Miller, até chegar nas coroas de flores e apropriações culturais que marcam aquilo que vou chamar de Primeira Grande Era do Look de Festival contemporâneo. Ela tinha apenas um cabelo perfeito, um vestidinho preto e uma impressionante coleção de chapéus, e nossas vidas nunca mais foram as mesmas.
Quase dez anos depois, ver Selena Gomez, Kendall e Kylie Jenner passeando pelos campos do Empire Polo Club parece uma imagem quase trivial se comparado com o que o Look de Festival se tornou hoje. Não podemos esquecer que entre Sienna Miller e Kendall Jenner existe um importante elemento: o smartphone e, mais especificamente, o Instagram.
Se no início dos anos 2000 a presença das celebridades nesse tipo de evento já tinha virado editoria cativa nos tabloides, O Advento das Redes Sociais solidifica esses ambientes não só como um espaço para curtir boa música e se expressar livremente, mas também - e, para muita gente, principalmente - um lugar para ver, ser visto e performar uma identidade pronta para o consumo em troca de likes. Para mim nada é mais representativo disso do que o momento em que a Taylor Swift4 platina o cabelo, mete o loko por aproximadamente 30 minutos e posta no Instagram uma foto com a seguinte legenda: “BLEACHELLA”. No one was safe.
Tenho pensado muito em como a experiência de shows e festivais foi e está sendo comodificada em níveis extremos, a ponto de, a qualquer momento, se tornar insustentável, e acho que o Look de Festival condensa esse cenário - que é bem mais amplo e não tem nada a ver com garotas que só querem uma Foto de Garota usando uma roupa bonita, mas sim com o Velho, Terrível e Sempre Pronto Para nos Atacar Pelas Costas, o capitalismo. Sei que pareço um véio branco rabugento que tem coluna em jornal impresso ao escrever isso, mas é muito difícil não vestir esse chapéu quando na semana do Lollapalooza surge uma aba no site da C&A dedicada ao festival. Mas divago.
Momento Véio Branco Rabugento Que Tem Coluna em Jornal Impresso
A estética boho é só um dos braços desse megazord, que também foi muito influenciado pelo rock e pelo punk que as primeiras edições do Glastonbury e do Lollapalooza traziam em suas raízes. Com a desilusão após os anos 60 veio o desejo de quebrar tudo, e a estilera dos frequentadores desses eventos traduzia isso. Se Sienna Miller é representante da iteração anos 2000-capitalista-contemporânea da herança do Woodstock, Kate Moss assume esse lugar de uma perspectiva rockeira. Nos anos dourados de seu relacionamento com Pete Doherty, a modelo se tornou um símbolo do que era um Look de Festival cool e descolado. Para a geração millennial, quem ocupa o posto é Alexa Chung, santa padroeira dessa newsletter, eterna em nossos corações.
Não podemos esquecer que ali nos anos 90 passamos por uma fase mais basicona, capitaneada pelo sucesso do grunge e do slacker rock. Sai a gritaria do punk e entra uma atitude meio foda-se preguiçosa - jeans, camiseta preta, camisa de flanela, bem à moda de Kurt Cobain. Ela está presente na nonchalance de Kate Moss e na forma como tanto ela quanto Alexa brincam com a mistura de peças ultrafemininas com outras mais pesadas, bem à moda de Courtney Love. No entanto, para os reles mortais, o uniforme é mesmo camiseta preta e calça jeans. Foi a minha referência quando comecei a frequentar shows, lá em 2009, e era um pouco da vibe do público do Rock En Baradero.
Quando digo que a Argentina é uma grande viagem para os anos 90, é disso que tô falando.
O rock, claro, não fica imune à comodificação - seja na música, seja no estilo. Penso que muito do maximalismo que vemos no Look de Festival de hoje deriva um pouco da Vontade de Causar que muitos associam a esse gênero mas que, se esvaziada de seu contexto, acaba desaguando em Christiane Torloni dizendo que hoje é dia de rock, bebê e todos os looks de globais no Rock in Rio.
2013, ano da fatídica declaração de Torloni, parece muito distante quando pensamos na velocidade com que o rock - enquanto gênero, enquanto atitude, enquanto visão de mundo - perdeu espaço nos últimos anos, seja na preferência dos ouvintes, seja como representante do zeitgeist. Faz 84 anos que o mainstream não vê um dia de rock. Existe um motivo para que um evento como Rock En Baradero só tenha ativação de marca da viação de ônibus New Chevalier e que os grandes festivais estejam jogando o rock pra escanteio nos seus line-ups: ninguém liga.
Esses eventos agora não são mais os espaços de contracultura de outrora e sim empreendimentos bilionários. Para atrair pessoas é preciso trazer os artistas que dialoguem com o que as pessoas querem ouvir hoje5. Nessas horas a gente lembra que o rock também é representante de um universo bastante excludente e hostil e por mais que, na condição de alguém que só quer ver suas bandinhas, seja fácil romantizar um evento como Rock En Baradero e dizer que não se fazem mais festivais como antes, não dá para ignorar que No Grande Esquema das Coisas é legal demais ter nomes como Rosalía e Lil Nas X como grandes atrações de um evento como o Lollapalooza.
Acho que esses dois são bons nomes para representar essa Segunda Era do Look de Festival Contemporâneo. Esse estilo é resultado do que é viver no caldeirão de referências que nos invade hoje, com acesso fácil a estéticas de diferentes épocas e a possibilidade de misturar todas elas e um pouco da nossa expressão pessoal, tudo ao mesmo tempo, agora, num verdadeiro enxame. Isso sem falar no pavoroso retorno do Y2K, cozinhando tudo isso em fogo alto, chamando os clubbers e os tecnêra pra frente, além da inescapável referência de Euphoria em nossas vida. Esse estilo também leva a escolhas bem pouco pragmáticas e confortáveis para o que é, na prática, um festival - mas rende ótimas fotos.
O Look de Festival é, sim, produto da mercantilização extrema que marca o capitalismo tardio, intenso e contraditório como só ele, o tecido das nossas vidas, mas também reflete uma transformação social em termos de diversidade que, ainda que imperfeita, já é um avanço em relação ao cenário de 20 anos atrás. No fundo, por mais que odeie ativações de marca e seções “festival” nas lojas de departamento, ainda prefiro a experiência de me sentir à vontade e gatinha com as roupas que gosto - glitter, saias coloridas e batom vermelho - do que acuada e desesperada para pertencer como rolava no início da adolescência sempre que eu ia a um show.
Enfim, viver no século XXI é muito complicado.
O que vem depois?
Os dois anos sem shows e festivais de música oferecidos pela pandemia mudou um bocado o panorama desses eventos. Além dos custos exorbitantes que tem inviabilizado turnês de artistas de pequeno e médio porte (o que torna os megafestivais ainda mais inescapáveis), o período de pausa aparentemente está trazendo uma virada ao minimalismo no que parece ser o início de uma Terceira Era do Look de Festival Contemporâneo. Basta ver como Kendall Jenner e Hailey Bieber, dois importantes termômetros de tendência dos nossos tempos, apareceram no primeiro Coachella pós-Covid: looks básicos, confortáveis e funcionais. Antes mesmo de começar as pesquisas para este texto, apareceu essa matéria no meu feed: Festival Beauty Is Getting a Major Make-Under.
Esse momento é um reflexo da crise e ameaças de recessão que bateu nos países lá de cima nesse pós-pandemia. Recessioncore (momento Didi Mocó suicida) é como a tendência vem sendo chamada, numa estética que reflete as vacas magras e a austeridade do período. E se a gente pensa no eterno movimento cíclico da moda, essa virada faz todo sentido.
O Coachella 2023 começa hoje, então logo mais a gente vai saber qual é a cara dessa nova era. Na próxima edição, conto para vocês o que é o meu Look de Festival Perfeito.
Espero que tenham gostado dessa longa viagem - tão longa, que até saiu uma música nova do El Mató para embalar os créditos finais. Conto com vocês para espalhar a mensagem agora que os meninos estão brigando.
Um beijo,
Anna
Todas as referências que trago aqui obviamente partem da #cena que conheço e frequento, que é da música indie/alternativa/rock de São Paulo.
Foi só agora, escrevendo sobre o tema, que me dei conta do componente de gênero que havia nisso tudo. Não me arrumar muito também era uma estratégia para passar despercebida em ambientes que na época ainda eram muito masculinos. Por ter começado a frequentar esses espaços muito nova, aprendi de cara que tinha que ser meio invisível para evitar assédios e abordagens inconvenientes por parte dos caras. Além disso, também era preciso ser um pouco “uma dos caras” para pertencer nesses espaços, principalmente para as minhas ambições da época, que era ser jornalista de cultura. Simplesmente não havia espaço na #cena para uma garota com expressões ultrafemininas ser fã de Radiohead.
Certa feita, no ensino médio, deixei uma amiga MUITO brava e ofendida quando comentei que o Woodstock devia ser uma fedentina dos infernos. Ela achou um desrespeito enorme a tudo que o evento representou, mas hoje, 15 anos depois dessa treta, mais do que nunca mantenho minha posição.
A Taylor Swift é muito cafona quase sempre, mas conseguiu um Look de Festival bem decente, o que é hilário;